quarta-feira, 2 de julho de 2014

A cidade e as divisas

AS CIDADES
Apesar de compartilharem o espaço geográfico através da divisa que as separam, as duas cidades são bem distintas. Uma delas é grande e metropolizada, enquanto a outra, menor, é ruralizada.

Na primeira, o setor industrial era altamente produtivo, a política extremamente institucionalizada e o planejamento cada vez mais direcionado através da pesquisa. Todo o sustento desta cidade estava através do pensamento racional e todas as suas certezas. 

Já na menor, a relação dos cidadãos era diferente, a começar pelo seu tamanho, que movimentava uma economia menor. Para alguns isso já seria referência para um sentimento negativo, mas pelo contrário, apesar de a tecnologia não ter se desenvolvido em todas as suas características, as pessoas tinham outros hábitos. Famílias que levavam as crianças para brincar na rua, avós que conversavam nos parques, pais que andavam de bicicleta, etc.


Mas existia um porém, ambas as cidades, aparentemente consistentes, não eram completas em si. Parece que o que faltava em uma, existia na outra, e vice-versa. Enquanto na primeira, as pessoas sentiam falta daquele contato com a natureza e um incômodo com a velocidade das coisas, na segunda cidade o atraso tecnológico as faziam ficar para trás em relação ao mundo e a “demora” fazia com que o tempo se tornasse menor ainda. 

Uma divisa territorial separava nitidamente o espaço geográfico de ambas. Essa delimitação era virtual porém muito real e no caso, limitadora. 

O CASAL
O rapaz e a garota estavam sempre juntos. O rapaz era mais velho, estava com preocupações de gente que trabalha em um emprego fixo em uma grande empresa, enquanto a garota, estava estudando em uma faculdade, que não era bem o que ela queria, mas se esforçava para poder alcançar as expectativas da família.

Ambos viviam em ritmos totalmente diferentes mas este era sempre quebrado porque não demorava para que eles estivessem juntos. Uma ação importante para eles era compartilhar todos os detalhes quando se encontravam e procuravam se ver cada vez mais por causa disso.

A frustração da vida de ambos diminuía nesses encontros que quando aconteciam, pareciam “desacelerar” tudo. Eles viviam para o momento, falando das pequenas coisas, se abraçando e se entregando para os detalhes. Mas chegou um momento em que aumentar o número de vezes que se encontravam, cada vez mais, gerou um esforço que eles não esperavam. Houve um desgaste.

Não se sabe bem se as frustrações das vidas individuais chegou a tal ponto em que os deixou infelizes para se afastarem, ou se exigiam do relacionamento uma condição messiânica para resolver todas as questões do mundo, mas o que aconteceu de verdade foi o definhamento de algo que eles vivenciaram. No último dia que se viram, caiu essa ficha para ambos. Em homenagem aos dias que passaram juntos, resolveram dar uma volta de carro nostálgica para lembrar dos momentos que passaram juntos. 

A FAMÍLIA CIRCENSE
Eles tinham uma tradição. Antes de partir de cada cidade, que montavam suas coisas para apresentar os espetáculos, deviam fazer uma pequena série de tarefas no último dia da estadia, para que a viagem corresse bem.

E então na última cidade que haviam se instalado, tudo estava correndo bem durante as apresentações, mas existia uma sensação no ar que começava a manifestar uma dúvida em relação a esse bem-estar. 

No último dia da estadia, como de costume, estavam realizando as atividades tradicionais para que a viagem no dia seguinte corresse bem. Dentre as atividades eles tinham que guardar os equipamentos em uma certa ordem específica, também existiam coisas que eram delegadas separadamente a alguns membros da família, e ao final da noite, eles se reuniam numa roda de violão para cantar e dançar, uma certa comemoração e um presságio dos próximos destinos.

Ninguém soube, mas aquela dúvida no ar fez com que um dos filhos, que tinha feito 18 anos recentemente, deixasse de fazer sua tarefa na lista de atividades tradicionais, e por isso naquela noite ele estava mais calado. Não sabia bem porque, mas acabou não fazendo parte indiretamente daquele sentimento de comunhão que estavam todos compartilhando.

E então como uma premonição para aqueles que mais confiavam na tradição, aconteceu algo durante a viagem, ainda quilômetros de distância do destino deles, um problema no transporte os fez parar numa rodovia, bem na divisa entre duas cidades, uma grande e uma menor.

Como estavam acostumados com situações adversas, os membros da família já se dividiram nas funções e acabaram se instalando na beira da estrada, praticamente com toda a estrutura do espetáculo, enquanto alguns dos homens mais experientes, formaram uma delegação e partiram em busca de ajuda. 

Disso veio a ideia de alguns membros da família, procurando reforçar a tradição, de que deviam fazer logo no fim da tarde, a roda de violão para que eles dançassem e transmitissem boas energias aos que saíram em busca de ajuda.

A energia foi tão boa que no dia seguinte acordaram todos muito mais dispostos do que nas cidades anteriores e acabaram olhando em volta e percebendo que estavam com a estrutura do espetáculo praticamente pronta. Resolveram então fazer uma homenagem às cidades vizinhas se apresentando durante as noites que iam ficar lá, mas os homens voltaram trazendo as boas notícias de que o problema do transporte estaria resolvido até a manhã seguinte. 

Houve um pequeno debate em cima disso, se deviam seguir o planejamento da viagem ou se atrasavam um pouco para se apresentar naquela noite, mas a energia estava tão boa que chegaram num consenso de fazer uma única apresentação. Ela foi tão única que só estavam na plateia um casal e um grupo de amigos que por acaso estavam passando, de carro e de ônibus respectivamente, e resolveram parar para assistir o espetáculo.

Também não se sabe muito bem mas aquela apresentação foi única para os artistas. Todos estavam inspiradíssimos. Não se sabe se foi porque a energia da festa da noite anterior ativou algo neles, ou se o lugar que estavam era sobrenatural. Mas todos sabiam que a noite foi mágica e transformadora.

No dia seguinte todos voltaram para seus respectivos caminhos. A família partiu em direção a mais uma apresentação em uma cidade distante. O casal rompeu e nunca mais tiveram as sensações do começo da relação. A cidade grande e a cidade pequena continuaram com suas atividades. Mas algo havia mudado neles naquela noite, apesar de continuarem com os caminhos “predestinados” anteriormente. A angústia de todos os envolvidos havia diminuído porque naquela noite, eles haviam se permitido sonhar.

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