segunda-feira, 7 de julho de 2014

Misantrópico no Limbo

Quando um projeto artístico surge, acontece um certo acordo entre as partes, como se fosse a união temporária por um objetivo único: seja a realização de uma peça, um filme, uma banda ou etc. Como um projeto coletivo, as vezes é difícil imaginar essa união acontecendo sem problemas que as diversas individualidades geram quando entram em contato.

Então inicialmente, espera-se que essa parceria vá acontecer com pessoas com afinidades mínimas. Foi considerando isso que o rapaz estava pensando em quem poderia chamar para participar da gravação do seu próximo curta-metragem. Ele estava ansioso porque nesta noite apresentava o último curta-metragem que havia feito (que também era o primeiro). Ele, uma pessoa introvertida e as vezes misantrópica, havia realizado uma “pequena abertura para o mundo” ao fazer um curta que tem a intenção de tocar outras pessoas. A vontade de fazer o próximo, indiretamente, era uma vontade de se manter neste fluxo de fazer arte e de se manter aberto.


A exibição foi realizada num projeto do Sesc, em que é apresentado um curta seguido de um longa-metragem e logo após, acontece um bate papo com os frequentadores. Neste meio tempo, antes do bate papo, o rapaz não conseguiu perceber quem estava tanto na exibição, mas esperava que ali pudesse encontrar essa outra pessoa para fazer a parceria e ajudá-lo a manter no fluxo artístico.

A pessoa que aceitaria fazer o próximo projeto estava naquela sessão e o encontraria no lugar menos esperado. Ansioso e com essas ideias pulsantes em sua cabeça, o rapaz não aguentou o longa-metragem terminar e foi em direção ao banheiro para se lavar e distrair. Ali mesmo na fila para o banheiro deu de cara com uma pessoa de feições familiares.

Como todo grande potencial que se apresenta de forma tímida e despretensiosa, aquela conversa dos dois gerou algo a mais; uma empatia. A pessoa, uma garota da mesma idade que ele, tinha feições familiares porque haviam se conhecido muitos anos atrás. 

Desde então, ambos construíram seus caminhos de faculdades e não se viram mais. Foi como se eles tivessem se conhecido em uma estação de trem, ambos partindo para suas respectivas viagens e não sabendo se se encontrariam mais, mas se acontecesse, certamente estariam diferentes. Era um encontro de despedida.

Nessa despedida de anos atrás, que ambos não tinha consciência de acontecer, os dois conversaram rapidamente. A poeira do tempo levou muita coisa dos detalhes daquela noite para o rapaz, exceto por um momento de descontração que transparecia de sinceridade vindo da garota. 

Durante aquela noite em que ambos assistiam a apresentação de uma banda em um bar, ele lembra nitidamente quando estava distraído percebendo algum detalhe dos instrumentos, e a garota veio ao seu lado e lhe deu um leve empurrão. A risada que veio em seguida mostrou seu tom de sinceridade e ele, se sentiu tocado pela vida que apareceu naquele sorriso.

O sorriso, agora em um formato mais tímido mas ainda descontraído, que aconteceu no Sesc anos depois, foi o gerador de toda essa lembrança. E o sorriso que o rapaz emitiu de volta foi o selador da empatia entre os dois naquele momento.

Conversas sobre arte, pedagogia, sociedade e cultura, deram o tom das interações entre os dois dali em diante, até que aparecesse o ponto correto para que ambos realizassem então o novo curta-metragem. Mas ao mesmo tempo, aquele fluxo de arte que o rapaz estava valorizando quando reencontrou ela, já havia se apagado e precisava ser acendido novamente.

Quando começaram a pensar nos detalhes para o projeto, pensando no “certo acordo entre as partes”, o rapaz teve uma leve sensação que aquele era um encontro de despedida novamente. Ele, que afastado do fluxo se sentia fechado para o mundo, sabia que estava diferente desde aquela noite no Sesc. Ao mesmo tempo, esperava que após a realização do próximo curta, esse fluxo fosse novamente despertado para que ele, novamente, estivesse em contato com a humanidade, colocando em termos da misantropia. Ele estava num suposto limbo e esperava que a realização deste projeto o alterasse novamente, e por isso, sentia que era uma nova 'despedida'. 

Desta vez era uma despedida que o deixava ansioso, um trem que ele esperava que fosse passar na sua frente e em vez de sentir angústia, viria um alívio. Ele esperava que o trem levasse o limbo embora.

Assim, durante o projeto, parecia que um trem havia realmente passado, mas este só tinha um vagão. Os demais, ainda viriam. Essa é a relação de um projeto, que um artista ou interessado, ao se envolver, não percebe exatamente o teor de sua importância, enquanto está no projeto. Quem sabe com o tempo a ficha iria caindo. As vezes ele tinha a sensação de que não era 1 vagão, mas 2 que haviam passado. As vezes eram 4 e as vezes não era nenhum.

Esta relação de angústia que o limbo lhe deixava internamente, ele não queria transparecer para a garota durante o projeto. Em compensação, além das filmagens, os dois conversavam. E aquela abertura para o mundo, parecia surgir nas palavras e nos gestos que trocavam. 

Ela, uma pessoa muito desenvolta e alegre, se deixava sorrir com toda a sua leveza. Ele, distraído com o limbo interno, sorria de volta de uma forma menor, mas não menos sincera. O que aconteceu foi que esse limbo foi se apagando durante as conversas, as vezes ficando como se fosse uma luz piscando, se fazendo presente e incomodando de longe, mas não interferindo de fato.

Então depois de uma angústia interna, ele sentiu um leve alívio. Como tinha a impressão de que a garota havia participado desta mudança, se sentia bastante grato a ela. O sentimento não bastava e gostaria de transmitir isso.

Na próxima vez que se encontraram foi para gravar mais uma cena. Neste dia ele olhava para ela pelo visor da câmera com ternura, mas ao conversar após a gravação, a luz do limbo piscava, alterando sua condição interna. E assim em meio a conversas despretensiosas, sem querer ele emitiu gestos ainda tímidos, de carinho, de admiração e de gratidão. Naquele bar após a gravação, ela havia se tornado importante para ele.

Mas como introvertido, sabia que essas sensações não fazem sentido para os outros só dentro da cabeça de quem sente. Apesar de enxergar que essa mensagem só faz sentido se transmitida, ele entendia que não deviam haver dúvidas, a mensagem deveria ser clara. Ao concluir isso, a luz do limbo piscava tão forte que parecia embutir um ruído sonoro junto. Ele decidiu pensar sobre isso novamente, quando estivesse sozinho em casa. 

Quando chegou em casa se lembrou do tempo em que escrevia e deixava vomitar as sensações, puras, e pensou que essa seria uma forma bonita de repassar para ela o que sentia. Se sentou e durante a noite, entre goles de café, escreveu o texto. Mas enquanto escrevia o texto e repassava as sensações pela sua cabeça, através do cheiro e da amargura do café, pensou que esses sentimentos não precisavam ser objetivos. 

Todos os olhares, os gestos, os sorrisos, os carinhos, mesmo que tímidos, mas, ainda assim, sinceros; valiam por muito. Da mesma forma, lembrou-se daquele empurrão dela que o havia marcado tanto por sua sinceridade. Assim sendo, dobrou o texto, colocou na gaveta onde estavam mais tantos outros papéis e decidiu que quando a visse novamente, iria sorrir o sorriso mais sincero.

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