quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"O silêncio caloroso"

O trajeto do ônibus e seu fator constante era o cenário de vários rostos cansados e que pareciam tão inseridos em suas rotinas que as vezes pareciam que se perdiam lá. O mesmo motorista, os mesmos passageiros, as ruas e os horários, tudo parecia tão comum e ciclíco que as mudanças e as novidades demoravam pra chamar atenção. E foi assim que eu acho que percebi a presença de uma nova garota entre os demais cidadãos uma das vezes.

Eu fui reparar inicialmente porque sua beleza se destacava para aqueles que reparavam nos detalhes fugindo da rotina, coisa que eu estava tentando. E apesar dos passageiros constantes, acontecia que os "lugares preferidos" eram escolhidos por pessoas eventuais desse trajeto que era também em um horário estratégico, perto da hora do almoço. E meu único contato era com o olhar.

Encontrava tantas vezes com ela que eu parecia estar construindo internamente um afeto, tanto que uma vez me peguei pensando se ela iria perder o ponto de descida e quando começou a levantar apareceu uma pessoa de idade vagarosa atrapalhando o caminho dela, eu sem pensar estiquei o braço e apertei o botão para que o ônibus parasse no próximo ponto, como se eu já estivesse ajudando-a. Sem haver trocado uma palavra que fosse.


Aconteceu que um dia desses o ônibus estava enchendo e estavam sobrando poucos lugares vagos, até que ela sentou do meu lado e apesar de "estranho" inicialmente, eu percebi que fiquei muito mais relaxado do lado dela do que dos demais que passavam eventualmente por lá. Passamos o trajeto todo em silêncio, eu com meu livro e ela com seu fone de ouvido e sequer houve desconforto.

E isso começou a se repetir, parecia que estávamos compartilhando nosso momento mesmo que sem palavras, mas um entendendo o espaço e o silêncio do outro, parecia que existia uma cumplicidade quando sentamos e assim não deixamos que outros sentassem ali atrapalhando ou bagunçando nossa paz. Parecia que tinhamos uma relação que superava o afastamento dos demais passageiros enraizados em suas rotinas, nós procurávamos uma fonte de calor no meio da frieza social.

De vez em quando surgiam umas dúvidas do tipo que eu queria saber um pouco mais, ultrapassar essa barreira tranquila do compartilhamento da experiência saber de onde ela vinha e para onde ia, se ela também pensava o mesmo, quais eram suas ideias, porquê preservava essa "solidão" tão bem, exceto seu nome, seu nome não me importava nessa hora.

Então os dias iam seguindo e eu me esforçava para não perder esse ônibus, parecia que era um dever da minha parte estar lá assegurando por ela e ao mesmo tempo ela por mim. E uma vez eu não a vi e caiu a ficha que não sabendo nada dela, nem seu nome, podia ser que eu a perdesse a qualquer momento. Fiquei procurando por ela em vão nesse dia e nos demais da semana. 

No começo da semana seguinte eu já não esperava mais vê-la durante a fila de espera. Lembrei que as coisas ruins acontecem mesmo sem a gente querer, e o que importava era "aproveitar enquanto durasse" no sentido de reconhecer a importância durante o processo, por também ter noção de que sem isso a gente sofre, então é procurar nos detalhes no caminhar das coisas o que a gente gostaria de lembrar de bom.

Então fui para meu lugar de costume e o ônibus começou a encher afinal também era um dia de chuva. O lugar ao meu lado seria um dos últimos a serem ocupados porque ficava bem na frente afastado dos demais que iam entrando pela traseira. Sentou um senhor do meu lado que levantou no primeiro ponto do trajeto, e quando o fez, a garota sentou no lugar dele. Eu fiquei sem reação.

Comecei a pensar naqueles detalhes dos acontecimentos que a gente esquece de preservar, na ideia de aproveitar algo durante o processo e saber valorizar as coisas e quando me dei por conta ela já estava levantando para o ponto. Eu me virei e toquei levemente em sua mão que se apoiava no banco e soltei a pergunta meio desajeitada "está tudo bem com você?" e ela me respondeu com um sorriso carismático que já estava querendo se formar.

Um comentário:

  1. Ótimo texto.
    Sempre me perco na curiosidade de saber o que é fato e o que você construiu para formar o texto.

    Abraço

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